A gênese da terapia ocupacional está na cultura. Aos que a ela são apresentados, exige-se sólida base cultural. É importante compreender que, mesmo antes de se tornar profissão, já era assim.
A humanidade sabe que é verdade que "quem canta seus males espanta" e que "quem trabalha não tem tempo para caraminholas", ou seja, são formas que expressam o caráter preventivo em higiene mental. Na tradição cultural, fazer algo é tomar uma atitude e tentar se antecipar ao problema. É o conhecido "cuidar do espírito", tão em voga entre gregos, troianos e romanos.
Hoje, na abrangência da cultura teleguiada, a terapia ocupacional é slogan de marketing: "Faça você mesmo sua terapia ocupacional com a lã Ursa Maior" ou "Com este maravilhoso aparelho, suas tardes de terapia ocupacional passarão mais e mais depressa." Hobbies, manias, jogos de vareta, panos, tintas, botões. Vale tudo. Esse tipo de publicidade tem muitos sentidos: seu tempo ocioso não pode ficar tedioso, então faça uma atividade qualquer; para que seu trabalho não ocupe todo o seu tempo, facilite-o com algo lúdico, atraente. É sabido que, ao longo do tempo, o fazer atividades tem contribuído (e muito!) para afastar os maus espíritos, os tormentos da alma, os sentimentos indesejados e as doenças.
As brincadeiras, os jogos, os passeios, tudo isso facilita a aproximação com os deuses, impregna a alma com o belo, organiza o cotidiano e provoca sentimentos de alegria e de felicidade. A propósito, o primeiro slogan da terapia ocupacional data de 131-200 d.C. e diz: "A ocupação é o grande médico da natureza." O nome do publicitário: Cláudio Galeno e Pérgamo.
A idéia de transformar trabalho, ocupação e atividades como instrumento profissional-terapêutico nasceu e se desenvolveu nos Estados Unidos. Grupos de profissionais criaram o Comitê de Higiene Mental no início do século movidos, décadas depois pôde-se comprovar, pelo caráter racionalista-iluminista-humanista dos grupos de Pinel. Marcada por esse caráter, em 1917 Eleanor Clark Slagle começou a treinar moças de família, maternais e habilidosas, como "auxiliares de reconstrução" para salvar doentes mentais e traumatizados de guerra. Os médicos eram os instrutores dessas moças e, portanto, orientadores do modelo de prática clínica.
No Brasil, quase que simultaneamente, médicos assistiam ou orientavam a chamada laborterapia (a exemplo do alemão erman Simon). Tivemos o privilégio de ter novos campos abertos por nomes como Ulisses Pernambucano (PE), Franco da Rocha (SP), Henrique de Oliveira Mattos (SP, primeira tese de doutorado da Faculdade de Medicina da USP sobre laborterapia), Jorge Gonçalves (SP, também com tese de doutorado sobre o tema, na USP), Nise da Silveira (RJ) e, especialmente, o entusiasta, médico e quase terapeuta ocupacional, Luis da Rocha Cerqueira.
Até 1950, nos Estados Unidos, Europa e Brasil, foram parcialmente os médicos que desenvolveram os estudos e as investigações empíricas que contribuem até hoje para o estabelecimento de teorias da técnica para terapia ocupacional. No Brasil, a partir de 1959, a Dra. Maria Auxiliadora Cursino Ferrari manteve-se, depois de um curso técnico de dois anos, como a precursora, aluna, professora e coordenadora do Curso de Terapia Ocupacional criado pelo Instituto de Reabilitação do Departamento de Ortopedia e Traumatologia da USP. "Marici" transformou esse curso em faculdade, abrindo espaço para o futuro curso de pós-graduação da Saúde Pública) (USP)= e para nossas carreiras universitárias. Esta apresentação é, antes de tudo, nossa homenagem à coragem e perseverança de "Marici". Ela, agora, sempre mesma, encabeça a linha de frente para a abertura do curso de pós-graduação em Terapia Ocupacional na USP. No final do século, ainda sem pós-graduação, estrito senso, terapeutas ocupacionais continuam sua formação em cursos correlatos. E continuam lutando para ampliar os espaços de aprendizado e atuação.
É preciso agradecer, também, aos coordenadores de áreas, aos professores, que como orientadores ou nas bancas examinadoras, têm nos dado espaço de formação e nascimento. Mas está na hora de avançar: temos que estudar especificamente a terapia ocupacional. O sentido que queremos dar a esta afirmativa está diretamente relacionado à gênese cultural da terapia ocupacional. É preciso investigar com profundidade nossas intervenções clínicas de tal forma a nos permitir estabelecer enunciados teóricos que desenhem e sustentem técnicas brasileiras.
A profissão Terapia Ocupacional deve, com tarefa mínima, fazer com que o indivíduo se desprenda de si mesmo e se volte para fora. Há nela, uma força irresistível em busca da saúde mental, de espaços virtuais de saúde que permitam a construção de um novo cotidiano, apesar dos defeitos, deficiências, doenças e descrença. Ao contrário do que alguns pensam, não é por condição moral que se ensina e se presta tratamento através do fazer, e sim pela unicidade de ética e de estética, que se estende à própria vida. Como nos ensinou Eda Tossari, as técnicas de terapia ocupacional devem ser inventadas a partir da idéia de uma engenharia ambiental, completando, de fora para dentro, a futura construção que deixará bem visível o produto final.
Trilha-se o de fora para dentro e vice-versa, numa relação dinâmica e triádica, composta por paciente-terapeuta-atividade. Nosso setting caracteriza-se por estar sempre de portas abertas para o social. Seus internos, portanto, devem estar prontos para aprender calcados no afeto, para que de fato possam aprender. As atividades, as mesmas que compõem o cotidiano de qualquer um passam a poder ser qualificadas de terapêuticas, desde que sejam o terceiro termo da nova relação estabelecida entre um terapeuta ocupacional e alguém que a demande.
A olho nu, podemos ver que a estrutura básica da terapia ocupacional é composta por uma série de procedimentos que buscam, e quase sempre alcançam, sucesso nos seus objetivos. Mas precisamos comprovar isso em laboratórios. O estabelecimento de teorias da técnica ou das técnicas nos aproximará, sem dúvida, da ciência. O olhar apurado da terapia ocupacional — esse mesmo olhar que transforma em comunicação —, a realização de atividades, o fazer, a construção, a produção, tudo isso deve se voltar também à invenção de um saber específico. Sei que, sem isso, a terapia ocupacional enfrentará dificuldades extraordinárias e provavelmente não poderá continuar existindo.
Ao chegar à Universidade de São Paulo, é com entusiasmo que me junto às colegas do curso de Terapia Ocupacional na expectativa de poder colaborar para ampliação de espaços de trabalho e de pressupostos teóricos. Para isso, nada como reforçar imediatamente a construção das Escolas de Pensamento da Terapia Ocupacional.
[Artigo publicado no Jornal da USP, seção Opinião, página 2, 7 a 13/4/1997]
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