Jô Benneton
A terapia ocupacional nasceu sob o signo da reabilitação. Ao longo de sua história, junto com a fisioterapia, o serviço social, a fonoaudiologia e a enfermagem, a terapia ocupacional integra o núcleo de sustentação dos centros de reabilitação.
Como compreendo sua especialidade, ela tem sua ação voltada para o treinamento e para o desenvolvimento de habilidades, na construção de um cotidiano para indivíduos da sociedade. As diferentes teorias de base, os métodos e as técnicas empregadas por terapeutas ocupacionais, com finalidades clínicas, não têm alterado esse caráter vocacional da profissão.
Na literatura específica, esse caráter vocacional é pragmaticamente ordenado como treinamento de habilidades, desenvolvimento educacional, orientação habitacional e sócio-recreativa, objetivando assim as ações da terapia ocupacional e a atuação das terapeutas ocupacionais.
Em 1985 a Associação Internacional de Reabilitação Psicossocial (IAPSRS) definiu como objetivos pragmáticos para suas agências de saúde, essas mesmas funções, com a sutil diferença de colocar em primeiro plano o desenvolvimento sócio-recreativo. Essa alteração, aparentemente pouco significativa, traz em seu bojo uma importante mudança de setting.
Priorizar o social em reabilitação psicossocial implica em sair de centros de reabilitação, de hospitais e de oficinas abrigadas para criar espaços de intervenção na própria comunidade. KLEINMAN, nos Estados Unidos, considera que terapeutas ocupacionais já familiarizados com o modelo de reabilitação proposto pela IAPSRS e dirigindo-se à adaptação funcional dentro da comunidade, terminaram criando uma promissora alternativa de atuação. Para que possamos compartilhar do entusiasmo de KLEINMAN, é preciso analisar as propostas técnico-administrativas da reabilitação psicossocial na sua relação com a terapia ocupacional.
De acordo com a Associação Americana de Terapia Ocupacional, entre 1986-1990 houve a redução de 16% para 11,8% de terapeutas ocupacionais trabalhando em psiquiatria. Há uma tendência muito grande em se analisar esse dado como sendo resultado da pouca investigação profissional de modelos alternativos ao hospitalocêntrico, que parece ter esgotado sua capacidade de produção de conhecimento e de objetivação de saúde.
Precisamos saber, então, o que realmente aconteceu com a busca destes modelos alternativos. Em relação à reabilitação psicossocial, por exemplo, (NEWMAN, 1991, apud KLEINMAN, 1992) constatou através de uma pesquisa realizada nas agências de reabilitação psicossocial nos EUA, que 11% das 212 agências registradas empregaram no mínimo um terapeuta ocupacional, enquanto 71% empregaram no mínimo um assistente social. Num total de 3.9522 trabalhadores de agências, apenas 24, isto é, 0,6%, eram terapeutas ocupacionais, sendo que os assistentes sociais ultrapassaram 21%. A maioria dos trabalhadores em reabilitação psicossocial aproximadamente 48%, são, como os americanos chamam, “para-profissionais”. Para nós, aqui no Brasil, o mais comum é chamá-los de “pessoal auxiliar”.
São, portanto, não profissionais. Dos 1885 “não profissionais” pesquisados, 59% não tinham grau universitário, 40% tinham grau de bacharelado e 1% ainda estava na Universidade.
Mantendo ainda fontes de informações próximas à literatura de terapia ocupacional e reabilitação psicossocial, volto um pouco no tempo em busca de explicação para alguns dados. Segundo FARKAS, apud RENWICK et al. para o trabalhador em reabilitação psicossocial foi criado um dispositivo que preconizava o treinamento dentro do próprio serviço. Formaram-se, assim, os especialistas em reabilitação psicossocial.
KLEINMAN pareceu-me um tanto desalentado quando, em busca de desvendar alguns mistérios, concluiu que, teoricamente, terapeutas ocupacionais em reabilitação psicossocial têm seu treino baseado numa abordagem holística. As técnicas aprendidas, entretanto, parecem ser um segredo muito bem guardado. Assim mesmo, ela concluiu seu artigo alertando os terapeutas ocupacionais de que, embora o número desses profissionais na área de saúde mental esteja diminuindo, o número de pessoas que precisam dos seus serviços não está. O que fazer, então? Penso que, em primeiro lugar, está a tarefa de encontrar um espaço mais confortável.
Analisando esses e outros estudos de colegas estrangeiros, é possível concluir que há uma séria questão de poder por trás da relação com a reabilitação psicossocial. CHAMBERLIN, num artigo crítico-reflexivo no Bulletin World Association of Psychossocial Rehabilitation, diz que apenas pessoas inconformadas falam sobre o poder. Creio que não: os precavidos e os esperançosos também.
Hoje nos visita a reabilitação psicossocial. A porta é aberta por este encontro, mas também queremos partilhar a hospedagem. Pouco conhecemos de nossos hóspedes e tomamos, então, suas próprias palavras para apresenta-los.
SARRACENO nos conta que a reabilitação psicossocial prevê um processo de restituição, construção e reconstrução de direitos políticos legais e sociais para cada cidadão. Ele é enfático quando propõe um projeto de reabilitação através de respostas positivas de profissionais e da sociedade capazes de promover as emoções e o conhecimento do doente mental. Creio que aqui podemos encontrar pelo menos uma primeira resposta à questão do poder que se encontra presente nos trabalhos dos colegas americanos e canadenses. A terapia ocupacional tinha um projeto técnico para a reabilitação. Não só ela, mas também aqueles profissionais não médicos que a sustentavam. Por algum tempo os médicos se afastaram da reabilitação, mas agora começaram a retornar. Para KLEINMAM, esse retorno a partir de 1986 é caracterizado como uma remedicalização. Como compreendo, principalmente através do que tento apreender da reabilitação psicossocial, a proposta é de uma ampliação do que era um projeto técnico para incluir o chamado sócio-político. Com isso imagino que a apropriação médica traz também, em conseqüência, uma melhor estrutura na intervenção medicamentosa. O que poderia ser tomado, então, como causa para a aproximação médica à reabilitação, pode bem ser uma boa conseqüência. Creio que a presença do médico, detentor de maior poder também sobre os projetos de reabilitação, dá a este maior chances de sucesso. Temos o dever de receber com esperança qualquer projeto dessa ordem e torcer para que se transforme em realidade.
O contrário das colegas do norte, as brasileiras têm sido bastante ativas e arrojadas no processo de desospitalização, da mesma forma como estão empenhadas em investir em programas na comunidade. Das três teses de doutorado de terapeutas ocupacionais defendidas em saúde mental no país, duas delas, de MEDEIROS e de LANCMAN, tratam dessas questões e de suas conseqüências. MÂNGIA et al., questionando a transformação do Hospital Juqueri, afirmam que:
“... a instituição não suporta a possibilidade da reinserção social real da população nela internada. Isso significa sua própria negação, a perda do seu papel. Ela impõe a todos, internos e funcionários, a reclusão e o confinamento nos pátios, mantendo-os longe das ruas e da vida das cidades, excluídos até a morte”.
Há um tipo de exclusão na terapia ocupacional que os próprios terapeutas ocupacionais colocam à mostra. NASCIMENTO diz o seguinte:
“A intervenção técnica centrada na atividade laborial (a marcenaria, a pintura, etc.) ou na relação terapêutica, opera uma divisão entre o técnico e o político que só beneficia a própria técnica porque a exime de assumir outras responsabilidades. E tranqüiliza artificialmente a nossa consciência”.
Sobre essa exclusão, FRANCISCO traz à tona a ética, na dramaticidade do sujeito-paciente no contexto da saúde, como objeto de fácil manipulação. OLIVER nos leva aos filantrópicos centros de reabilitação brasileiros e nos mostra terapeutas ocupacionais paternalisticamente “fabricando indivíduos”, como puro exercício de reabilitação. Como nesses centros não está prevista a inserção social de sua população, ela passa a vida girando em torno de exercícios de reabilitação.
BARROS, crítica dos projetos americanos e profunda estudiosa da política-social basagliana, ultrapassa esse conhecimento para nos chamar a reconhecer a existência de uma terapia ocupacional brasileira.
Esta, com seu diálogo com a psicologia, é diferente da americana, puramente funcionalista, e imposta aqui ao nascer da profissão. Ela ainda prediz:
“Acredito que a terapia ocupacional no ano 2000 deverá voltar-se para a construção permanente de um saber solidário diante da dor humana, e deverá voltar-se para a necessidade de uma produção teórica que seja capaz de captar a realidade e o movimento social”.
FURTADO propõe como forma de chegar lá, isto é, ao futuro, uma reflexão sobre o que é o fenômeno em si, em terapia ocupacional, e o que é seu objeto.
As colegas que acabo de apresentar já estão incorporadas do espírito dualístico da reabilitação psicossocial, ou seja, da especificidade profissional aliada à política social, como sempre tem enfatizado BERLOTE. Quanto a mim, usufruindo de todos esses conhecimentos e informações levantadas pelas colegas terapeutas ocupacionais, posso dar-me ao luxo de particularizar.
Para começar, tomo emprestada a inquietação do querer-saber-futuro do antropólogo, etnólogo, educador, ficcionista, poeta e socialista, RIBEIRO:
"Só resta uma saída: é brigar para construir no futuro uma sociedade de tecnologia muito avançada, mas com o gosto de viver a cordialidade, o respeito recíproco e a liberdade que os índios tinham”.
Juntando esta que pode muito bem ser uma receita com as inquietações de BARROS e de FURTADO, ando as voltas com o avanço técnico da terapia ocupacional. Por um lado, quase como mecanismo de reação, tenho procurado a especificidade da terapia ocupacional, em contra-posição ao puro e simples movimento de adaptação a projetos de Saúde. Por outro lado, a especificidade é que vai qualificá-la de social e, portanto, passível de transmissão. Creio que em todos os lugares onde a terapia ocupacional é respeitada, ela poderá, em cordial interdisciplinaridade, cumprir propósitos da reabilitação psicossocial.
A questão que particularizo não tem a ver, então, com os propósitos da reabilitação psicossocial, uma vez que os compreendo amplos e abertos para "negociações" político-sociais. Como a terapia ocupacional, para mim, tem como propósito final à inclusão social do excluído, é preciso começar a avaliar, no social, sua real eficácia. Esta é a grande questão atual. Se por um lado penso que é preciso aferir a inclusão, por outro temos de admitir que uma questão ética ganha o primeiro plano. A aferição se fará pelo novo ou pelo readquirido?
Se meu olhar se volta à crença na reabilitação, pelo re fico testando o novo na sua relação com o velho. Mas será que alguém que teve um dedo quebrado e que depois da reabilitação ficou completamente curado. Será que ele é a mesma pessoa? Parece que não. Ele teve a experiência de não poder usar um dedo e depois pôde usá-lo novamente. Isto, queiramos ou não, acarreta mudanças. Mesmo que o problema tenha sido de pequeno porte, a pessoa testou e foi testada até que o dedo ficasse bom. A mudança é apenas de reaquisição?
Vejamos, agora: quando um esquizofrênico fica bom? Quando ele volta ao que era antes? Sabemos que ele não volta e com isso corremos dois grandes riscos: o primeiro é mantê-lo para sempre em testes; o segundo é conseqüência do primeiro, ou seja, é nunca poder considerá-lo reabilitado.
A busca de aferição da ética na minha profissão levaram-me a um afastamento quase que definitivo de todo conceito que implique em "recobramento" no sentido da restituição do estado anterior. Desta forma, não há comparações. Apenas o vivido e o experimentado tornam-se subsídios para o futuro. Com isso, exponho francamente minhas preocupações com essa outra dualidade aparente da reabilitação psicossocial.
Todo um novo e arrojado projeto que alia a saúde e a comunidade sociopoliticamente pode ficar definitivamente atrelado a um termo comprometido como é "reabilitação"? Ou melhor, de que forma é a proposta da própria reabilitação psicossocial para revitalizar o termo "reabilitação" de maneira a separá-lo da memória social circulante e circunscrita por aspectos legais, jurídicos e militares, isto é, de estados de exceção?
Um estado de exceção é, sem dúvida, o fato de se estar doente. Não consigo ver a reabilitação psicossocial com propósitos circunscritos a esse estado. Creio, inclusive, que internações projetadas através de estratégias de reabilitação psicossocial, para estágios iniciais da doença, estabelecem a possibilidade de melhor prognóstico do que os promovidos pela simples medicalização. Dessa forma teremos menos ainda que nos preocupar com reabilitação.
Em síntese, o termo "reabilitação" precisa ser desvinculado de estados de exceção e precisa, ao mesmo tempo, ter e manter compromissos de fato com o desenvolvimento de vida, qualquer vida, no sentido da trama do cotidiano, que implica na aceitação de tudo o que é habitual. Talvez por não imaginar beneficies e por não admitir mais "reabilitação" como algo ligado à prática da desconstrução, seja ela qual for, ouso sugerir o abandono e a substituição do termo da World Association of Psychossocial Rehabilitation.
BENETTON, M. J. Terapia ocupacional e reabilitação psicossocial: uma relação possível? Rev. Ter. Ocup. Iniv. São Paulo, v. 4/7, p. 53-58, 1993/6.
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